Educação na Década Internacional dos Afrodescendentes

Dossier: Education In The International Decade for People of African Descent (2015-2024)
Nilma Lino Gomes1 *
http://orcid.org/0000-0002-0767-2008
Shirley Aparecida de Miranda2 **
http://orcid.org/0000-0001-8312-2262
Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação Belo Horizonte, MG, Brasil

“Devemos lembrar que os povos afrodescendentes estão entre os mais afetados pelo racismo. Muitas vezes, eles têm seus direitos básicos negados, como o acesso a serviços de saúde de qualidade e educação.”

Ban Ki-moon ex-Secretário-geral das Nações Unidas
A III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 2001, conferiu visibilidade internacional à situação dos afrodescendentes que habitam dentro e fora do continente africano. Desses, quase 200 milhões vivem nas Américas por resultado do tráfico transatlântico da escravidão moderna. Muitos outros, migrantes e refugiados, vivem nos diversos lugares do mundo. A situação naturalizada de pobreza, fome, discriminação frente à justiça, violências sobrepostas vividas pelas pessoas negras descendentes de africanos foi objeto de intensos debates na III Conferência, ainda sob os impactos do fim do apartheid na África do Sul. Além do declínio da segregação racial como política de Estado, as denúncias do racismo insidioso que atinge grandes contingentes afrodescendentes em todo o mundo repercutiram no reconhecimento de que estão entre os povos mais afetados pela restrição dramática de importantes direitos básicos, tais como saúde, emprego, moradia e educação. Dessa Conferência resultaram a Declaração e o Programa de Ação de Durban, dos quais o Brasil é signatário. Esses são importantes instrumentos jurídicos que amparam o respeito, a proteção e o cumprimento dos direitos humanos e ratificam as políticas de igualdade racial já realizadas no Brasil.
Os debates que emanaram daquela Conferência fortaleceram as denúncias do Movimento Negro, de mulheres negras e dos quilombolas sobre a histórica e perversa imbricação entre desigualdades raciais, sociais e de gênero no Brasil; e colocaram em xeque esse Estado, pressionando-o a adotar medidas e políticas de superação do racismo e em prol da igualdade racial. Políticas essas que o Brasil experimentou em sua fase mais democrática, no período de 2003 a 2016, com a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Esta, juntamente com outros ministérios, Movimento Negro, Organizações não governamentais (ONGs) de combate ao racismo e demais movimentos sociais antirracistas, foi responsável pela implantação de uma série de medidas de Estado e de governo voltadas para a garantia dos direitos da população negra.
2011, quando a ONU fez a reunião internacional para a revisão da Declaração e Programa de Ação contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, intitulada Durban + 10. No caso do Brasil, essa realidade tem sido atestada por um conjunto de pesquisas oficiais e acadêmicas e pela contínua denúncia do Movimento Negro.
Atenta a essa situação internacional, a ONU, em Assembleia Geral, por meio de sua Resolução nº 68/237, de 23 de dezembro de 2013, proclamou a Década Internacional de Afrodescendentes, com início em 1º de janeiro de 2015 e fim em 31 de dezembro de 2024, e com o tema: “Afrodescendentes: reconhecimento, justiça e desenvolvimento”. Trata-se de uma estratégia que visa instar os Estados-Membros e demais países do mundo para uma tomada de posição em relação à superação do racismo e das desigualdades que incidem sobre negras e negros no mundo. O tema apresenta os três eixos que orientam as ações a serem realizadas durante a década.
Sem prescindir do reconhecimento das denúncias de situações de discriminação e de desigualdade racial, feminicídio negro, genocídio da população negra, a articulação dos eixos da Década Internacional dos Afrodescendentes aponta para a superação do racismo epistêmico, caracterizado pela inferiorização dos conhecimentos não ocidentais. A ênfase à contribuição dos afrodescendentes ao longo da história da humanidade, na África e na diáspora africana, consiste num recurso para a justiça cognitiva.

Nesse âmbito, a educação, como direito social, tem merecido atenção especial tanto do Movimento Negro brasileiro quanto da comunidade internacional na luta contra o racismo. Sabe-se do potencial da educação para formar novas gerações com subjetividades emancipatórias, justamente pelo fato de ela não se restringir à escola, mas abarcar o processo de formação humana e instigar a construção de uma postura crítica e reflexiva diante da vida. A disputa pela educação revela sua função como instância de reverberação de representações e narrativas válidas e seu potencial na destituição de estereótipos.
No Brasil e em outros lugares do mundo, pesquisadoras e pesquisadores negros, brancos e de outros grupos étnico-raciais se dedicam a pensar e pesquisar a educação e a sua importância na construção de uma sociedade antirracista. O presente dossiê faz parte desse processo de reconhecimento da importância da temática racial e africana no Brasil e no mundo, sobretudo no contexto educacional. Trata-se de uma publicação que organiza uma série de reflexões atuais sobre o tema educação, relações raciais, África e diáspora africana aos eixos da Década Internacional dos Afrodescendentes.
O dossiê inclui artigos que discutem a educação e as relações étnico-raciais no Brasil e em outros países da diáspora africana, a saber, Estados Unidos da América do Norte (EUA), Colômbia, Portugal e Moçambique. São ensaios, resultados de pesquisas, entrevistas e resenhas que abordam os sujeitos da educação, a formação de professores, a corporeidade e a epistemologia africana e da diáspora, e ainda com enfoque nas relações internacionais Sul-Sul.
Autoras e autores brasileiros e estrangeiros, com significativa trajetória acadêmica foram convidados a colaborar com o presente dossiê. No âmbito do ensino de química, Anna M. C. Benite et al. abordam a cultura africana e afro-brasileira. Os sujeitos da educação são tematizados no artigo de Ana Cristina Juvenal da Cruz, que discute mulheres e crianças no Projeto UNESCO, e no artigo de Joana Célia dos Passos e Carina Santiago dos Santos, que tematizam a educação das relações étnico-raciais na Educação de Jovens e Adultos (EJA). A pedagogia da crueldade e o extermínio da juventude negra são analisados no artigo de Nilma Lino Gomes e Ana Amélia de Paula Laborne. As interpelações da diáspora são discutidas no artigo de Shirley Aparecida de Miranda e Susy Rocío Cotento Lozano, que tematizam aproximações entre Brasil e Colômbia nas disputas por narrativas na educação. O diálogo internacional ocorre com Joyce King e as suas reflexões sobre a educação e a tradição intelectual pan-africana nos EUA e sua ausência nos currículos e na formação de professores. Bruno Sena Martins e Adriano Moura apresentam uma análise de como, em Portugal, ator central na infame escravidão, a Década Internacional de Afrodescendentes tem o potencial para desalojar uma autorrepresentação nacional que desconsidera o passado colonial português e o racismo estrutural que marca as desigualdades na sociedade portuguesa. Compõem ainda o dossiê uma entrevista com o reitor Jorge Ferrão, da Universidade Pedagógica de Moçambique, que nos brinda com uma análise sobre a cooperação internacional entre Brasil e Moçambique; e uma resenha sobre o livro O Movimento Negro Educador elaborada por Roberto Carlos da Silva Borges.
Esperamos que o potencial diaspórico, de ancestralidade e de análise crítica dos artigos aqui apresentados, reverbere em uma contribuição para fazer emancipar a nossa educação.

REFERÊNCIAS.

ONU. Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.. Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024), 2014. Disponível em: http://decada-afro-onu.org/documents.shtml . Acesso em: 10 jul. 2018.

Contato: Faculdade de Educação. Universidade Federal de Minas Gerais, Av. Pres. Antônio Carlos, 6627 - Pampulha, Belo Horizonte|MG|Brasil MG 31.270-901

1- * Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, Professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Programa Ações Afirmativas na UFMG.

2- ** Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, Professora Associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Programa Ações Afirmativas na UFMG.

FONTE:
Educação em Revista
Print version ISSN 0102-4698On-line version ISSN 1982-6621
Educ. rev. vol.34 Belo Horizonte 2018 Epub Nov 23, 2018
https://doi.org/10.1590/0102-4698000034

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Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravidão e do Comércio Transatlântico de Escravos

Por mais de 400 anos, mais de 15 milhões de homens, mulheres e crianças foram vítimas do trágico comércio transatlântico de escravos, um dos capítulos mais terríveis da história humana.

Retomando a memória das vítimas, a Assembleia Geral, em sua resolução 62/122 de 17 de dezembro de 2007, declarou o dia 25 de março como o Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravidão e do Comércio Transatlântico de Escravos, a ser observado anualmente.

A resolução também solicitou o estabelecimento de um programa de extensão para mobilizar instituições educacionais, sociedade civil e outras organizações para incutir nas futuras gerações as “causas, consequências e lições do comércio transatlântico de escravos, e para comunicar os perigos do racismo e do preconceito”.

Desde então, a cada 25 de março, o Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravidão e do Comércio Transatlântico de Escravos oferece a oportunidade de honrar e relembrar aqueles que sofreram e morreram nas mãos do brutal sistema de escravidão.
Este Dia Internacional também tem como objetivo promover a conscientização sobre os perigos do racismo e do preconceito nos dias de hoje.

Mais informações sobre o Dia e seu contexto histórico: http://www.un.org/en/events/slaveryremembranceday/index.shtml

20º aniversário do projeto 'A Rota do Escravo' da UNESCO:
um compromisso com a reconciliação

Em 2014, a UNESCO celebrou o vigésimo aniversário do projeto 'A Rota do Escravo', lançado em 1994 em Ouidah (Benin). A ignorância ou o encobrimento dos principais eventos históricos é um obstáculo ao entendimento mútuo, à reconciliação e à cooperação entre os povos. A UNESCO decidiu então quebrar o silêncio sobre o comércio de escravos e a escravidão, que afetaram todos os continentes e causaram as grandes convulsões que moldaram nossas sociedades modernas.